A venda pode levar à prisão, como a da ex-candidata a vereador do PSOL Brunella Hilton. A punição, no entanto, é incerta, pela pouca quantidade de droga que costuma entrar nas receitas, hoje ensinadas nas redes sociais. O efeito é inexpressivo em adultos, segundo pesquisadores. Mas são um risco para crianças e adolescentes: na semana passada, quatro passaram mal ao ingeri-los em uma escola em Salvador. Os doces com maconha, conhecidos como “brisadeiros”, se espalham pelas praias, festas e destinos turísticos, enquanto não se define se são uma forma de tráfico ou de consumo mais brando da cannabis.

  • ‘Deve ser mais dois ou três’: Pai de Vitória não acredita que suspeito preso agiu sozinho
  • Luxo: PF e Gaeco fazem operação contra quadrilha de roubos de cargas que ostentava Ferrari, lanchas e camarotes

As receitas vêm sendo disseminadas em publicações nas redes sociais e sites de “culinárias canábicas”. Normalmente, a quantidade de maconha usada não passa de três gramas, abaixo das 40 gramas fixadas pelo Supremo Tribunal Federal como limite para diferenciar usuários de traficantes, no julgamento no ano passado que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal.

Isso não significa que o seu consumo ou distribuição seja livre de riscos. No carnaval de São Paulo, Brunella foi detida com cerca de cem brisadeiros na Avenida São João. Travesti que fez parte da candidatura coletiva Bancada dos LGBTQIA+ do PSOL à Câmara de São Paulo, Brunella se tornou ré por tráfico, mas vai responder ao processo em liberdade. Para negar a acusação, a defesa alega que ela sequer tinha dinheiro quando foi detida, o relatório policial não especifica a quantidade da droga nos doces e Brunella tem autorização médica de importação de canabinoides para tratamento de ansiedade.

A dificuldade em identificar a quantidade usada em um doce afasta as sentenças por tráfico, explica Emílio Figueiredo, advogado da Rede Reforma, que atua em casos de política de drogas. Figueiredo lembra que, em 2018, a Justiça do Rio absolveu uma mulher detida com uma caixa de brigadeiros com a droga na Lapa por esse motivo.

— Em boa parte dos casos, embora a pessoa seja presa, no decorrer do processo há uma dificuldade de as autoridades comprovarem a existência de substâncias nos doces, servindo os casos mais para uma espetacularização da atividade policial — critica Figueiredo, que destaca que os comestíveis de cannabis são realidade em muitos países. — Inclusive com mercado regulado, com especificidade desta forma de consumo e informações de redução de danos e doses.

Nas redes, usuários compartilham receitas de culinária canábica — Foto: Reprodução

Os brisadeiros se tornaram uma atração em São Thomé das Letras, refúgio do turismo místico em Minas Gerais, mas com a oposição da prefeitura e da polícia. Depois de a administração municipal ter feito um alerta contra a venda do quitute, da “brigaconha” e de outros brownies e doces “mágicos”, no sábado, a polícia apreendeu no fim de semana cerca de 400 guloseimas batizadas e deteve dez pessoas, liberadas após a instauração de um inquérito por falta de elementos para a ratificação de uma prisão em flagrante. No carregamento recolhido, estavam 200 brisadeiros, 70 brownies, 40 cookies, 70 cogumelos e 15 palhas italianas com cannabis.

Para Pablo Nunes, coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), apreensões como as de São Thomé das Letras e das guloseimas que estavam com Brunella ilustram os problemas da criminalização da maconha. No ano passado, o Cesec divulgou um estudo que estimava custo anual de R$ 7,7 bilhões no combate às drogas, somando os gastos das polícias, sistemas penitenciários e Judiciário da Bahia, do Distrito Federal, do Pará, do Rio, de Santa Catarina e de São Paulo.

— A apreensão dos comestíveis é o quadro mais bem acabado do quão insana é essa escolha por criminalizar essas substâncias. Alocamos a corporação policial para lidar com algo que não necessariamente tem impactos nas questões reais de segurança pública que a sociedade vive, enquanto outros crimes mais importantes seguem sem a atenção devida — defende Nunes, para quem esses recursos seriam melhor empregados em outros setores, como educação e saúde. — Principalmente se tratando de Brasil, onde há déficits importantes em serviços públicos essenciais.

Receitas de culinária canábica circulam nas redes sociais — Foto: Reprodução
Receitas de culinária canábica circulam nas redes sociais — Foto: Reprodução

O risco à saúde é um argumento para os opositores dos brisadeiros. No alerta da prefeitura de São Thomé das Letras antes da operação do fim de semana, a Vigilância Sanitária dizia que o consumo pode causar intoxicação severa, sintomas psiquiátricos graves e, em casos severos, até a morte. Médicos reconhecem que esses doces são um risco para crianças e adolescentes, que ainda estão com os sistemas nervosos em desenvolvimento.

— Existe vulnerabilidade muito grande do sistema nervoso nessa idade — afirma o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Unifesp e ex-consultor do Ministério da Saúde e da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça.

Xavier acrescenta que os comestíveis têm efeitos mais imprevisíveis justamente pela falta de identificação da quantidade e da substância exata que tantas vezes impede a caracterização de tráfico na área legal.

— O consumo por doce demora muito para fazer efeito. Tanto que quem quer se entorpecer, usa o cigarro. Mas, com o doce, a pessoa pode achar que ainda não fez efeito e aí comer mais.

Foi um doce com maconha que fez quatro estudantes do Centro Educacional Edgar Santos, da rede pública de ensino médio da Bahia, passarem mal e serem levados a uma unidade de pronto atendimento em Salvador na semana passada. Uma estudante do grupo admitiu ter preparado o doce em casa e levado para os colegas, segundo a Secretaria de Educação da Bahia. A pasta acrescentou que o colégio “não compactua com o uso de drogas ou substâncias ilícitas em seu ambiente”.

Efeitos adversos para adultos também foram observados em um dos mercados regulados de maconha: o estado americano de Colorado, onde a substância foi legalizada em 2014. Cinco anos depois da liberação, um estudo publicado na Annals of Intern Medicine apontou que o consumo de brownies com maconha podem ter um potencial mais perigoso e serem mais potentes do que a absorção por cigarro ou por vaporização.

A partir da análise de pessoas atendidas por causa de maconha em prontos-socorros da área metropolitana de Denver, o estudo concluiu que leva a um número desproporcional de crises médicas, mais probabilidade de intoxicação severa, problemas cardiovasculares e problemas psiquiátricos agudos.

quitutes de maconha se popularizam nas ruas e na internet, numa linha tênue entre o consumo e o crime