O Tribunal do Júri absolveu, neste domingo, sete policiais militares suspeitos de participar da Chacina do Curió, que vitimou na madrugada 11 pessoas no bairro de mesmo nome na Grande Messejana, em Fortaleza, em novembro de 2015. Eles eram julgados sob acusação de não prestarem socorro ou se omitirem durante a ação letal de colegas de farda.
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Os sete jurados não acolheram a tese do Ministério Público, de que esses sete PMs tinham o dever legal de agir para evitar a chacina, e não o teriam feito. Após oito horas e meia reunidos a portas fechadas, o Conselho de Sentença da 1ª Vara do Júri da Comarca de Fortaleza decidiu pela absolvição de Daniel Fernandes da Silva, Gildácio Alves da Silva, Luís Fernando de Freitas Barroso, Farlley Diogo de Oliveira, Renne Diego Marques, Francisco Flávio de Sousa e Francisco Fabrício Albuquerque de Sousa. O MP e a Defensoria Pública, que atuou como assistente da acusação, disseram que vão recorrer.
“Assim, em respeito à soberania dos veredictos dos jurados, o Conselho de Sentença não acolheu a pretensão ministerial e, dessa forma, ABSOLVEU os réus (…) Réus que já se encontram em liberdade por este processo. Ficam revogadas todas as medidas cautelares e restrições de direito em face dos réus ora absolvidos”, afirma trecho da sentença, publicada após o julgamento, que durou um total de 77 horas.
Na noite da chacina, segundo a acusação, dezenas de policiais — vários de folga — combinaram em grupos de mensagens vingar o soldado Valtemberg Serpa, morto horas antes numa tentativa de assalto. Até este quarto júri do caso, em outros três julgamentos, 20 PMs haviam sido julgados por homicídio, tentativa de homicídio e tortura. Seis foram condenados, cinco deles a mais de 200 anos de prisão. Treze agentes, suspeitos de omissão, foram absolvidos, e um teve o crime desclassificado. Os recursos ainda não foram julgados. Outros três agentes vão a júri em 22 de setembro, na quinta e última análise do caso.
As defesas sempre negaram o envolvimento dos réus, sob a alegação de que responderam a contento aos chamados, estariam longe dos locais das mortes e/ou não poderiam ter evitado o resultado. O Ministério Público afirmava que os agentes se omitiram enquanto as abordagens policiais começaram “pela procura de alvos preferenciais” e viraram um “típico justiçamento”, com vítimas “escolhidas aleatoriamente”, sem ligação com a morte de Serpa. Os agentes agiram encapuzados, com viaturas e carros civis, e sumiram com vestígios dos crimes.
Silvia de Lima foi a primeira a chegar no local onde foram baleados seu filho, o sobrinho Jardel de Lima, de 17 anos, e outros três rapazes, Pedro Barroso, de 18 anos, Alisson Cardoso e Álef Cavalcante, de 17.
— Meu filho ficava gemendo, dizia ‘mamãe, socorro’. Liguei para o 190, e ficaram perguntando várias vezes a mesma coisa, meu CPF. Aí todo mundo começou a correr. Me escondi, mas vi eles recolhendo alguma coisa. Estavam de roupas escuras e com os rostos cobertos. Meu marido pegou meu filho e os meninos e levou para o socorro. Álisson e Jardel ficaram, já mortos — relembra.
Só o filho de Silvia sobreviveu, depois de mais de um mês internado. Irmã de Silvia, Suderli de Lima disse ter reconhecido o filho Jardel caído, pelos dedos dos pés.
— Indo para lá, vimos vários carros de polícia, vários policiais parados, conversando. Quando chegamos, reconheci de dentro do carro. Ali eu desmoronei. Passei a noite toda lá, e o corpo só foi recolhido de manhã. Meu filho e os outros foram tachados de bandidos. Mataram nossos filhos outra vez. Eu, que não sou de conversar, virei uma leoa. Chorar, eu choro todo dia. Mas, se a gente não tivesse saído do luto para a luta, não teríamos justiça — diz Suderli.
Suderli foi uma das precursoras do Movimento Mães do Curió, que há dez anos cobra a responsabilização dos PMs.
Segundo a denúncia, câmeras de segurança mostraram a viatura em que estavam os PMs Daniel Fernandes da Silva, Gildácio Alves da Silva e Luis Fernando de Freitas Barroso junto a dois carros civis com as mesmas características dos envolvidos na morte dos jovens perto da casa de Silvia.
Em nota, os advogados Régio Menezes e Emanuelle Horácio disseram que as acusações são “improcedentes e fruto de narrativas absurdas de conluio entre policiais”. Os agentes são lotados em outra área e só foram ao local sob “ordens expressas” de apoiar o isolamento dos corpos, afirmou a defesa, segundo a qual eles estavam a sete quilômetros de distância dos crimes.
O MP diz que câmeras flagraram a viatura de Farlley Diogo de Oliveira, Renne Diego Marques e Francisco Flávio de Sousa no local onde estavam os corpos de Álisson e Jardel. Os PMs foram acusados de não prestar socorro, não tentar identificar os assassinos e ainda fotografar as vítimas. A denúncia diz que imagens e testemunhas apontam que um comboio de cinco carros civis passou pela viatura com homens encapuzados e fez “contato amigável”. “Deu tudo certo aí?”, teria dito um do comboio. “Tá tudo certo”, teria respondido um dos agentes.
Procurada pelo GLOBO antes do julgamento, a defesa dos PMs não se pronunciou. Veículos com características semelhantes teriam sido identificados, mais tarde, como os responsáveis por pararem o ônibus em que estava Renayson Girão da Silva, de 17 anos, que levava a namorada até em casa. Ele foi retirado do coletivo e morto a tiros, à queima-roupa.
— Quiseram indagar ele por causa das tatuagens, que tanta gente tem no mundo. É um sentimento de dor, revolta e tristeza. Não somos justiceiras, mas lutamos por memória e justiça, para que não se repita. Meu filho era inocente. Olho para as fotos dele e converso. Não gosto de chuva porque ainda sinto o cheiro de quando ele voltava molhado do futebol. Ele sonhava ser jogador — afirma Maria de Jesus da Silva, mãe do jovem.
O sétimo réu, Francisco Fabrício Albuquerque de Sousa, foi julgado em separado dos colegas de viatura. O MP afirma que eles foram acionados para ir ao local onde foram baleados Marcelo Mendes e Patrício Leite, ambos de 17 anos. Os PMs, porém, relataram não ter visto nada “anormal”, e a ocorrência foi encerrada. Diz o MP que, por causa dessa omissão, os encapuzados voltaram e mataram Francisco Elenildo Chagas, 41 anos; Jandson de Souza, 19; e Valmir da Conceição, 37 anos.
Os colegas de Fabrício foram absolvidos pelo júri e voltaram às ruas. Advogado do trio, Carlos Bezerra Neto afirma ter provado que o MP confundiu dados e viaturas.
— O MP interpretou que eles fizeram vista grossa, mas provamos que cumpriram a contento, em tempo razoável, todas as seis ocorrências que foram mandadas. Mandaram eles para locais em que não dava para ver o crime, não viram nenhuma movimentação. O MP ainda confundiu viaturas. A que passou e não parou foi uma que não levada a júri. Em nenhum dos eventos eles teriam condição de agir para evitar o resultado — argumentou o defensor, segundo quem os clientes estavam a oito quilômetros na hora das mortes.
No primeiro júri do caso, em junho de 2023, Marcus da Costa, Wellington Chagas e Ideraldo Amâncio foram condenados a 275 anos e 11 meses de prisão, assim como Antônio José Vidal Filho — este último foi detido meses depois nos Estados Unidos, por mentir no pedido de visto, e ainda não foi deportado. Em setembro do mesmo ano, José do Nascimento pegou 210 anos e 9 meses de prisão por vários crimes, e José Wagner de Souza, 13 anos e 5 meses, por tortura.
Mãe de Álef, Edna Cavalcante assistiu a todas as sessões. Ela conta que temia ver o filho morto num acidente de skate na rua, mas “nunca” pelas mãos da Polícia Militar. Há dez anos, todo dia 11, ela faz uma homenagem para o jovem nas redes sociais.
— Ninguém escapa da morte, mas eu não aceito do jeito que foi. Polícia não é para matar, é para exercer a segurança. Não é justo que a mãe, com impostos, pague a bala que mata seu filho. Eu assisti no tribunal ao vídeo do meu filho sendo retirado do carro, sem blusa. Ele acabou de morrer ali. Foi muito cruel. Desenvolvi diabetes, crise de ansiedade. O Estado mata nossos filhos e deixa nossa cova aberta — afirma Edna, que diz lutar para que bairros periféricos “tenham o mesmo tratamento dos ricos”. — Temos o direito de ver nossos filhos formados, temos o direito de ter nossos netos.
O segundo júri do caso Curió foi o mais longo da História da Justiça cearense, com 97 horas e 30 minutos de trabalhos. O recorde anterior era do primeiro julgamento da chacina. A expectativa é que a nova sessão dure entre seis e 12 dias.