Alguns ficaram estupefatos, outros choraram ao vivo na TV. As reações ao show político e musical realizado pelo presidente argentino, Javier Milei, na noite de segunda-feira, no estádio Movistar Arena de Buenos Aires, provocou diferentes reações entre jornalistas e políticos locais. A grande maioria — com exceção da base leal e incondicional dos libertários — considerou o espetáculo uma afronta à sociedade argentina, em momentos de enormes dificuldades econômicas para o país, em consequência, entre outros motivos, das políticas de ajuste fiscal implementadas pelo governo.
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Nos canais de TV locais, jornalistas que não muito tempo atrás eram alinhados a Milei ficaram claramente chocados com as imagens do presidente argentino cantando rock para uma multidão de cerca de 15 mil pessoas. As cenas no Movistar Arena lembraram a campanha eleitoral de 2023, quando o chefe de Estado conseguiu estabelecer uma conexão emocional forte com milhões de argentinos que estavam cansados dos governos passados — sobretudo peronistas e kirchneristas. Mas os tempos mudaram, e Milei, segundo mostram pesquisas recentes divulgadas no país, não tem hoje a mesma conexão que soube construir há dois anos.
Presidente argentino faz concerto para 15 mil pessoas
Nesse contexto, fazer um show de rock e apresentar um livro intitulado “A Construção do Milagre” foi, na avaliação de analistas e jornalistas locais, um erro crasso do presidente, em momentos em que seu governo tenta selar um novo acordo financeiro com os Estados Unidos de Donald Trump, considerado essencial para que a Argentina possa evitar uma nova etapa de fortes turbulências financeiras — e até mesmo um eventual novo calote da dívida pública. Analistas dizem que “sem os EUA Milei não conseguirá superar a crise, mas com os EUA talvez não seja suficiente”.
Enquanto o ministro da Economia Luis “Toto” Caputo negocia em Washington, Milei canta rock nacional em Buenos Aires. No mesmo show, o chefe de Estado defendeu o ex-presidente Jair Bolsonaro e disse que a esquerda quer acabar com presidentes como ele e Trump. Um Milei com um discurso furioso, de outras épocas.
Numa Argentina na qual 80% das pessoas enfrentam dificuldades para cobrir suas despesas mensais, a atitude do presidente não tem o mesmo impacto que em campanhas passadas. No canal de TV do grupo La Nación, a candidata a deputada pela província de Buenos Aires Maria Eugenia Talerico, do partido União Liberal, chorou ao ver as imagens do presidente.
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Talerico foi funcionária do governo do ex-presidente Mauricio Macri (2015-2019), que se reaproximou de Milei nos últimos tempos. Depois de ter sido escanteado pelo presidente em 2023, Macri voltou a ser convocado. Os tempos são críticos, e Milei deixou rivalidades políticas de lado em nome de sua sobrevivência. As lágrimas da candidata a deputada refletiram a revolta que a atitude do presidente causa em muitos setores da política e da sociedade argentinas.
— Venho da província de Buenos Aires, de ver as pessoas passando necessidade. Não é hora de gastar fortunas num show de rock — declarou a candidata, com a voz embargada.
Milei se comporta como um candidato, e não como um presidente. Busca recuperar a conexão perdida após vários escândalos de suposta corrupção, envolvendo, inclusive, sua irmã, Karina Milei, secretária-geral da Presidência. Em conversas informais, diplomatas, analistas e jornalistas locais falam num governo “que parece estar à beira do precipício”. Mas Milei parece viver outra realidade. A desconexão do presidente com a sociedade é cada vez maior.
Faltam menos de três semanas para as eleições legislativas nacionais de 26 de outubro, e pesquisas que circulam em Buenos Aires mostram um cenário adverso para a Casa Rosada. Peronistas e kirchneristas antecipam bons resultados em muitas províncias argentinas, após terem derrotado o governo na eleição legislativa regional na província de Buenos Aires, em 7 de setembro passado.
Milei tem pouco tempo para reverter um cenário complexo e escolheu um caminho perigoso, que poderia levar a um elevado nível abstenção entre os eleitores que permitiram sua chegada ao poder, em 2023.